As discussões em torno da criação de um novo marco regulatório para o EAD estão em andamento. Tensões e interesses do mercado, sobretudo em função da portaria nº 528/24, que suspendeu a criação de cursos, ampliação de vagas e polos EAD, não arrefecem. Entretanto, passam ao largo da objetividade técnica com que a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) vem conduzindo as discussões, recebendo sugestões de entidades representativas e especialistas dos setores público e privado.
São consensos entre os players do mercado as afirmações de que é preciso garantir a qualidade e que as regras atuais para o EAD estão defasadas. São de 2007, e desde lá as tecnologias e metodologias avançaram. Para o MEC, a flexibilização das normas regulatórias e dos instrumentos de avaliação, em 2018, contribuiu para um crescimento sem parâmetros adequados.
O crescimento já era consistente antes mesmo de 2018, acelerou com a pandemia e o movimento ascendente continuou no pós-pandemia. O Censo da Educação Superior apontou que, em 2023, dos 9,9 milhões de estudantes do ensino superior, 4,9 milhões estavam alocados no EAD. A diferença entre as modalidades é de 150.220 matrículas. Neste ano de 2024, o EAD já pode ter superado o ensino presencial.
A concepção de novos referenciais de qualidade é a primeira etapa para, em seguida, discutir-se a construção de novo arcabouço legal e, por fim, as alterações nos instrumentos de avaliação, com a participação do Inep. Os debates acontecem no âmbito do Conselho Consultivo para o aperfeiçoamento dos processos de regulação e supervisão da educação superior, o CC-Pares, órgão recriado em junho pelo Ministério da Educação (MEC) e presidido por Marta Abramo, secretária da Seres. Participam dele órgãos do governo, como Inep, CNE, Andifes, Capes; representantes das entidades do setor privado – entre elas, Semesp, Abmes, Anup – e a União Nacional dos Estudantes, a UNE. Outras entidades, embora não oficialmente participantes do Conselho, estão no debate.
Na apresentação dos dados do Censo da Educação Superior, no começo de outubro, Marta Abramo lembrou que, desde o ano passado, grupos de trabalho e consultas públicas vêm promovendo reflexões. Em seminário recente afirmou que “parte desse crescimento na educação a distância não significa expansão, é substituição. Ao mesmo tempo que as matrículas estão se expandindo na educação a distância, há um recuo na educação presencial. Para nós gestores e educadores é o primeiro tema de reflexão”. Ela lembrou, ainda, que o EAD não tem problemas de oferta – são 24 milhões de vagas para quase 5 milhões de ingressantes.
Como regular esse sistema e garantir a qualidade são perguntas que a Seres e o CC-Pares tentam responder. A secretária contou que já recebeu sugestões de 15 entidades e realizou vinte visitas técnicas para conhecer os modelos de oferta de EAD. Em breve, o documento com cerca de trinta páginas, no momento em revisão, trará o resultado desse debate, construído por meio do “conhecimento e compromisso coletivos”, nas palavras da secretária.
As contribuições
O Semesp criou o GT EAD, reuniu especialistas para analisar a oferta de EAD no Brasil e produziu o documento Dimensões da qualidade para cursos de EAD, entregue à Seres em setembro. Nele, os especialistas abordam questões como a qualidade do conteúdo ministrado, a confiabilidade do serviço educacional prestado, a experiência do aluno, o suporte oferecido, a responsabilidade da IES e a segurança proporcionada pelo ambiente digital.
Priscilla Bonini Ribeiro, diretora-geral do campus Guarujá da Unaerp, diretora do segmento de universidades do Semesp e também participante do GT EAD, acredita que a maior contribuição do grupo foi propor um guia e um glossário para o segmento de EAD, “desde a concepção do curso em educação a distância às condições de qualidade para sua oferta, e os recursos de acompanhamento de qualidade e excelência”. As reflexões contidas no documento, afirma Patrícia, “pretendem principalmente equalizar os instrumentos e indicadores para serem efetivamente aplicáveis nos mais diversos cenários e realidades da educação no país”.
Foram elencadas as seguintes dimensões de qualidade: caracterização de carga horária – teórica, prática, presencial e virtual –, caracterização do curso – assíncrono ou síncrono e presencialidade protocolar ou regulada –, agentes diretamente envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, papel dos polos, evasão e retenção – empregabilidade, satisfação, suporte acadêmico e pedagógico – e engajamento.
Visto assim, de maneira sistematizada, o processo parece simples. Mas é fruto de reflexões acerca da necessidade de se repensar conceitos e o contexto atual. Não é possível pensar cursos EAD a partir dos mesmos parâmetros da educação presencial. Beatriz Maria Eckert-Hoff, vice-presidente de excelência acadêmica e institucional da Cruzeiro do Sul Educacional e membro do GT EAD do Semesp, reflete acerca do conceito de presencialidade, a partir do avanço tecnológico com o GenIA e a vivência da sociedade em meio à pandemia.
“A pandemia nos mostrou que a perspectiva de ‘lugares e tempos diversos’ deixou de ser a mesma quando o mundo de interações físicas ficou limitado. Essa travessia pela pandemia mudou, inevitavelmente, nossas vidas, nossas casas, as formas de trabalho, as relações interpessoais e impactou os modos de pensar, de falar, de interagir e de socializar. Modos que implicam novas ou outras práticas sociais e de linguagem, logo, outros modos de ensinar e de aprender”, afirma.
Na medida em que a tecnologia traz novas possibilidades de interação antes inimagináveis, é possível compreender que “distância e distanciamento são diferentes quando falamos sobre relações humanas, incluindo os processos de aprendizado”. Para Beatriz, “há verdadeira presencialidade quando esta faz sentido e quando há motivação e interesses genuínos, e isso vai além da simples presença física”.
Nesse contexto, é preciso cuidar da interação. Para Priscilla Bonini, “a presencialidade nos cursos EAD precisa levar em conta a interação, ou seja, que as instituições criem ambientes de aprendizagem que favoreçam a interação entre os alunos, os estudantes com seus tutores, para maior colaboração e engajamento nesse processo educativo”.
Em relação ao papel dos docentes e dos tutores no processo de ensino-aprendizagem, com agentes diretamente envolvidos na oferta de educação a distância, uma das dimensões elencadas, Patrícia afirma que “é preciso haver um equilíbrio meticulosamente determinado entre o número de estudantes e de agentes educacionais envolvidos, ajustado à realidade do perfil do alunado, dos recursos utilizados e da metodologia aplicada. E acompanhar constantemente os alunos, com indicadores que sinalizem o desempenho no processo educacional e que possam permitir ajustes contínuos”.
Mais recomendações
De acordo com o 14º Mapa do Ensino Superior, do Instituto Semesp, há 51.746 polos EAD espalhados pelo país. “O modelo de educação a distância se organizou no Brasil ao redor da ideia de polo presencial”, destaca João Mattar, presidente da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed). As IES oferecem EAD e elas têm de ter polos com atividades presenciais, mas essa centralidade dos polos já não corresponde à realidade. ”Cada vez mais foi possível substituir algumas atividades presenciais por atividades a distância, por causa das novas tecnologias e metodologias”, explica.
Além do incremento da tecnologia, há as aulas práticas, realizadas nos ambientes profissionais. “Tenho um curso de gastronomia a distância, quero fazer uma formação prática. Não vou ao polo, vou ao restaurante, ao hotel. Vou fazer um curso de enfermagem – que rende muita discussão, inclusive, a atividade prática é no hospital”. Para Mattar, “a proposta da Seres parece ainda muito focada na ideia do polo, um resquício do início do EAD. Precisamos explorar mais a ideia de ambientes profissionais”.
A partir dos referenciais iniciais propostos pela Seres, além da necessidade de uma nova concepção acerca dos polos, a Abed tem mais três pontos a considerar, um deles, a centralidade do aluno. “Há um discurso, inclusive na apresentação da CC-Pares, de que ‘o aluno está no centro’, mas ele não está nem como dimensão, o aluno fica subalterno a outras dimensões”, explica o presidente.
Outra questão, diz Mattar, é a necessidade de avaliar a qualidade, “avaliando também se aquela IES tem controle de qualidade e isso tem de ser uma dimensão da avaliação. É um pouco metalinguístico, mas é preciso perguntar: há controle interno na IES?” A gestão, diz Mattar, também não está contemplada pela Seres no documento inicial. “Não estão olhando para a gestão, apenas para elementos acadêmicos, pedagógicos, e a gestão é muito importante como elemento de qualidade. Ela está em todos os referenciais estrangeiros.”
Por fim, Mattar menciona a importância de avaliar o impacto do curso EAD na vida profissional do egresso, uma prática que para a graduação é muito pouco difundida no Brasil, mas referências internacionais para o EAD insistem nesse item. “A nota que o aluno tirou não é o mais importante. Ele vai trabalhar, vai contribuir para a sociedade. A formação é pensando nisso, não se esgota no curso. A leitura, nos parece, ainda está muito focada no curso.”
O impacto nas IES
As discussões – portanto, também incertezas – terão continuidade e vão chegar a 2025. Para falar sobre os parâmetros e indicadores de qualidade para o EAD e o impacto do novo marco regulatório no sistema do ensino superior, o Semesp realizará o segundo seminário sobre o tema. Será no dia 4 de dezembro, das 9h30 às 12h30, em Brasília.
Fonte: Revista Ensino Superior